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sábado, 24 de novembro de 2012

Ferraris


O FERRARI MENOS AMADO

fotos: topspeed.com e Ferrari




Estava eu domingo passado na maravilhosa garagem de um amigo, admirando seus incríveis carros, quando ele mencionou casualmente que podíamos dar uma volta no Ferrari Mondial 8 dele. Imediatamente me lembrei do que escrevi há algum tempo aqui no blog, quando fiz uma lista dos 10 melhores Ferrari de todos os tempos:

...é fato que nunca foi criado um Ferrari menos do que sensacional, nunca, em tempo algum.”

Era uma oportunidade única de morder a língua. Aquele Mondial 8 de 1982, recém-importado dos EUA pelo meu amigo, é um carro muito raro aqui no Brasil, porque foi fabricado na época da proibição das importações, e portanto só pode aparecer agora que tem mais de 30 anos de idade, importado como carro de coleção e valor histórico. Mas é também simplesmente o menos amado Ferrari de todos os tempos. Um 2+2 baseado no 308 GTB, lançado na fase talvez mais baixa de desempenho da marca, o Mondial é um dos Ferrari mais baratos no mercado de usados hoje, e o menos venerado pela imprensa quando era um carro zero-km. Se nenhum Ferrari é menos que sensacional, este carro provaria o ponto, para um lado ou para o outro...

Mas antes de contar como foi este breve mas esclarecedor passeio, um pouco de história se faz necessária, para colocar as coisas em perspectiva.

Os Ferrari “light”

No início, Ferrari de rua era sempre V-12. Em competições, Enzo fazia de tudo para ser competitivo: quatro em linha, seis em linha, V-6, V-8 e V-12, tudo que fosse necessário para atingir a “injusta vantagem”, como definiu o grande Mark Donohue. Mas nas ruas, e mesmo no imaginário popular, Ferrari era sinônimo de uma dúzia de cilindros, aquela que sempre será a mais exótica das configurações.

Enzo sempre foi um exímio manipulador desta que é a maior febre atual: a imagem. Criou para si e para seus carros uma aura de divino, de insuperável, de melhor, de uma forma incrivelmente efetiva. Seus carros eram caros, mas superlativos em tudo, e o V-12 era um exemplo claro disso. Todo Ferrari era um feroz e enorme V-12 de competição enfiado em um grã-turismo para as ruas. Caros, super-velozes, exóticos, raros. E exclusividade de milionários, marajás e estrelas de Hollywood.

 Dino 206 GTB

Por este motivo, quando decidiu que era necessário fazer uma linha de carros menor e mais barata para adicionar volume de produção à fábrica, Enzo não quis chama-los de Ferrari. Apareceram como uma marca separada, com o nome de seu falecido filho, Dino. O primeiro deles, lançado com o nome de Dino 206 GTB em 1968, era equipado com um V-6 a 65 graus, com duplo comando de válvulas no cabeçote, e todo em alumínio. O motor era instalado em posição central-traseira, outra novidade para a marca de Modena. Projetado em conjunto com a Fiat sob a supervisão de Aurelio Lampredi, e fabricado pelo gigante de Turin, o V-6 equipou também um carro desta marca, chamado, meio obviamente, Fiat Dino.

Fiat Dino Spyder

O motor de dois litros não duraria muito; logo Lampredi reprojetava o motor e lhe dava um bloco de ferro fundido mais robusto, e um aumento de cilindrada para 2,4 litros, para fartos 198 cv. O Dino, um carro belíssimo, e equipado com freios a disco e suspensão independente por duplo "A" sobreposto nas quatro rodas, foi um tremendo sucesso. Capaz de atingir 240 km/h, é hoje um dos clássicos mais amados da marca.

A próxima evolução da marca aconteceu em 1973, com o lançamento do Dino 308 GT4. Este novo Dino crescia ainda mais em motor, agora um V-8 de três litros e nada menos que 258 cv, e crescia também em tamanho, com a adoção de dois pequenos bancos atrás do motorista, caracterizando uma configuração 2+2. O estilo, até hoje controverso, é de Bertone, e não da Pininfarina, casa que desde os anos 50 era a encarroçadora oficial da marca.

Dino 308 GT4

Duas coisas levaram ao aparecimento deste Dino maior: um deles foi a disponibilidade do motor maior, desenvolvido para o berlinetta que substituiria o 246 em 1975, o carro que hoje conhecemos como 308 GTB/GTS. E o outro foi a competição no mercado: o maior competidor dos Dinos sempre fora o Porsche 911, um carro que nasceu e permanece um 2+2 de espaço até que generoso atrás, e que em 1971 ganhara um novo motor de 2,4 litros. Com desempenho semelhante, o 911 ganhou um monte de compradores potenciais de Dino simplesmente oferecendo lugares para os filhos pequenos deles.

Ferrari 308 GTB (1975)

O 308GT4 é o antecessor do Mondial 8 que conheci domingo passado. Seu estilo controverso não ajudou nada suas vendas nos EUA, nem muito menos o espaço pífio nos bancos traseiros, pequenos até para os muito pequenos. Foi daí, deste fracasso de vendas, que a Ferrari resolveu fazer oficial algo que praticamente todo dono de Dino vinha fazendo desde o início da marca: trocar os logotipos por cavalinhos empinados e o nome Ferrari. O sucessor do Dino 246 GTB/GTS foi lançado em 1975 como Ferrari 308 GTB/GTS, e o 308GT4 trocou também o seu nome para Ferrari no mesmo ano, sepultando de vez a submarca Dino.

Ferrari Mondial 8 (1980)

Em 1980 aparecia então o Mondial 8 que é o tema deste post. O objetivo deste substituto do 308 GT4 era resolver os dois problemas básicos dele: o desenho e o espaço interno. Resolvido foi apenas o espaço interno, fruto de um aumento de entreeixos e um inteligente reempacotamento dos passageiros pela Pininfarina. Já o desenho externo, teve praticamente a mesma reação de seu antecessor pela imprensa: muito pouca gente gostou, e se gostou, não falou nada.

Além disso, outro problema, ausente no 308GT4, apareceu. A potência do motor diminuíra para atender as novas normas antipoluição em vigor principalmente nos EUA (o maior mercado da marca), mesmo com a adoção de injeção eletrônica. O carro era equipado com um sem-fim de acessórios modernos como vidros e teto solar elétrico, ar-condicionado etc, o que, em conjunto com o fato de que era um carro maior, aumentou muito o peso do veículo. O desempenho, portanto, sofreu muito. Um Ferrari, mesmo os de entrada, nunca foi um carro barato, mas tradicionalmente compensam isso com um desempenho exemplar. Não foi o caso aqui.

O V-8 dos 308/Mondial 8

Nos EUA, um Mondial 8 de 215 cv acelerava de 0 a 100 km/h na casa dos 8 segundos. Uma quantidade imensa de carros muito mais baratos podia facilmente vencê-lo em um dos “Gran Prix de semáforo”, tão populares naquele país. Sendo assim, não importava muito que em final, ou em uma estrada com curvas, o Ferrari pudesse defender muito bem sua honra. O estrago, e a fama do Mondial 8, estavam selados.



Os Ferrari de entrada continuaram a evoluir, porém, e o Mondial com eles: O V-8 ganhou 4 válvulas por cilindro em 1982 (230 cv) e foi aumentado para 3,2 litros (270 cv) em 1985. Uma versão conversível da Mondial também foi disponibilizada desde 1983.

Para o substituto da 328 GTB/GTS, a Ferrari preparou um carro completamente novo, onde o V-8 de 3,4 litros estaria em posição longitudinal e o câmbio, transversal. Este novo Berlinetta seria lançado em 1989 com o nome de Ferrari 348ts, mas seu motor e transmissão apareciam um pouco antes no Mondial T. Esse último Mondial tinha 300 cv, uma melhora substancial, e era um carro muito mais rápido que o primeiro.

Ferrari Mondial T (1990)

O 348ts virou F355 em 1995. Em 2001 aparece o 360 Modena, e o Ferrari “de entrada” se tornou praticamente tão veloz quanto os de 12 cilindros, coisa que permanece até hoje com o 458 Italia. Mas nunca mais, desde o fim do Mondial T em 1993, houve um Ferrari de motor central-traseiro e lugar para quatro pessoas. Os italianos deve ter perdido a paciência e a partir dali mandado quem quisesse quatro lugares comprar “quella danatta macchina tedesca”, o 911.

Conhecendo o Mondial 8



Que diferença é ver um carro ao vivo, de perto! 

Ali do meu lado, baixo, largo, comprido e vermelho, toda a falta de proporção de que tanto se fala ao ver fotos desaparece. E realmente lindo, e cheio de identidade da marca. O carro não é pequeno, medindo 4.580 mm de comprimento, e com o entreeixos de 2.650 mm, praticamente as mesmas medidas do Fiat Linea, mas é bem mais baixo e largo que ele. O Mondial 8 de 1982 vinha originalmente com um conjunto de pneu/roda de aro métrico, de 390 mm (15,3 polegadas), com pneus Michelin 240/55VR390, mas o do meu amigo está com as rodas aro 16 do mais novo Mondial T (1989-1993). Ficaram absolutamente perfeitas no carro, e sem dúvida mais práticos quando for necessário achar pneu de reposição. 

O estado do carro é invejável para o que é, no frigir dos ovos, um carro usado de 30 anos de idade. Não é perfeito como um carro de exposição, mas perfeito para o uso. O interior está muito bom ainda, sem rasgos em tecido ou qualquer outro indício de idade avançada. Tudo funciona perfeitamente, dos vidros e teto solar elétricos ao ar-condicionado. Os bancos traseiros, real motivo do modelo existir, não são lá uma maravilha em espaço, mas são semelhantes em espaço aos do 911. Objetivo alcançado. O espaço é o mesmo, mas o ambiente é muito mais agradável, claro, aberto, propício ao convívio. A Itália é infinitamente mais gregária que a Alemanha, então tudo faz sentido.



Antes de entrar no carro, o dono o ligou, (pegou de estalo, que delícia é a injeção eletrônica) e ele ficou ali, numa marcha-lenta alta e nervosa, esquentando, enquanto conversávamos. Quando ouvimos a rotação cair e a marcha-lenta se estabilizar baixinha e silenciosa, o dono disse: ela está pronta! Vamos?

Andando de Mondial 8

Richard Parry-Jones, o genial engenheiro da Ford e criador do primeiro Focus, dizia que quase tudo que há para se saber sobre um carro pode ser descoberto nos primeiros 50 metros. Sinceramente não sei se isso vale para qualquer carro, mas certamente valeu aqui. Bastaram alguns segundos ao volante para que um sorriso se estampasse em meu rosto, e que começasse a grunhir de prazer feito cadelinha vira-lata no cio.



Provavelmente os engenheiros da Pininfarina, para conseguir mais espaço no banco traseiro, além do aumento do entreeixos, devem ter movido o motorista um pouco mais para frente, porque você fica numa posição que parece estar em cima do eixo dianteiro. Os seus pés estão lá no meio do carro, de lado, para livrar a caixa de roda esquerda. O pára-brisa está muito próximo da sua cara, e a frente do carro desaparece ao que parecem ser milímetros à frente do pára-brisa. Os instrumentos? Para alguém do meu tamanho (1,92 metro) estão completamente invisíveis, apontados para minha barriga. 

Durante o passeio, não faço a menor idéia de que velocidade andei, que rotação alcancei, qual era a pressão do óleo, quanto de gasolina tínhamos, quantos quilômetros andamos... O volante é virado para cima, e a ergonomia, como todo carro italiano de verdade, é criada para um biótipo de chimpanzé: braços compridos, pernas curtas. Para dirigir, o segredo é chegar mais perto do volante e deixar as pernas abertas, flexionadas. E, lembrem-se, viradas para o meio do carro. Prego!



Mas, come un miracolo, você não se incomoda com tudo isso, pelo contrário! A posição de dirigir é só diferente, porque imediatamente a posição dos pedais, do volante e do câmbio é entendida e fica natural. Mais que natural, fica uma delícia.

Os três pedais, pivotados no assoalho, são sensacionais em peso, sensibilidade e curso. E todos eles comandam sistemas que são também de uma precisão e efetividade incríveis. Embreagem fácil de modular, freio idem. Freios fortes, e obviamente potentíssimos desde muito devagar. E o acelerador... ah, o acelerador!



O carro realmente não é estupidamente rápido. Subjetivamente, até meu velho Nissan parecia mais rápido. Mas isso não quer dizer que seja um carro lento, pelo contrário. E afinal de contas, o que importa isso? Vamos apostar corrida na rua agora? Claro que não! O que importa, sempre, é como o carro é por detrás do volante. E nisso, comparar meu velho Maxima com este Ferrari é uma brincadeira de mau gosto.

Faça aquele acelerador preciso fazer um arco a partir do assoalho, e o que vem de volta é um empurrão gostoso, forte, prazeroso. O motor é torcudo, responde bem desde baixa rotação em qualquer marcha, e sobe de giro liso, encorpado, rápido. E silencioso! Ao contrário dos escandalosos Ferraris modernos, que parecem uma dupla de motos japonesas com escapamento aberto, o V-8 do Mondial se faz ouvir, mas de uma forma sofisticada e civilizada, sem ficar aí gritando pela rua feito uma madonna abandonada. Adorei! E não senti necessidade alguma de mais potência. O carro anda bem pacas, pelo menos o suficiente para entreter. Os números e os comparativos que se lasquem!



E deve ser uma delícia numa estrada sinuosa. A direção, sem assistência, lê o solo com perfeição, e é ultra- precisa nas reações. O dono do carro me advertiu que era pesada para manobrar, mas não achei; o peso, para ser repetitivo, é perfeito. Não perfeito como uma moderna direção com assistência elétrica que varia esforço com velocidade; perfeita como um mecanismo de verdade, que faz exatamente o que você manda a todo momento. A suspensão não é dura demais, mas o carro tem aquela firmeza no rodar que já te diz a que veio.

Mas o que é mais sensacional mesmo é o câmbio. Antes de se dirigir o carro, aquela alavanquinha cromada parece delicada, tão bonitinha que é com aquela bola preta em cima e a placa cromada na base marcando a posição das marchas. Mas quando você se ajeita para dirigir lá daquele jeito todo torto, mas legal, ela cai exatamente onde devia estar. Junto ao quadril, nem longe nem perto, na posição ideal. Quando coloquei o carro em movimento, acelerei e troquei para segunda, ouvindo aquele sonoro “clack!”, e sentindo o movimento mecânico e preciso daquela alavanca, ao mesmo tempo em que o V-8 cantava feito Laura Pausini lá atrás, pensei: Bicho, isso vai ser bom pacas!



E como foi... A cada troca de marcha, me segurava para não soltar um urro de felicidade, impedindo assim que o dono do carro me achasse maluco. A troca é sempre limpa, positiva, precisa. Não é leve, mas o peso não incomodaria ninguém. Como um ferrolho de rifle, um mecanismo preciso, rápido e delicioso de usar.

Apesar do passeio ser curto, sem tempo nem lugar para a atingir a intimidade e a maior velocidade que vem dela, foi uma delícia. O carro é fácil de dirigir, confortável, amigável. Mas também é algo sério, que com certeza nas mãos de um piloto hábil pode deixar muito carro teoricamente mais rápido a ver navios numa estrada sinuosa. Além disso, é de uma época que hoje me parece perfeita: sem a chata perfeição moderna, com seus mil sistemas eletrônicos me chamando de burro e tomando o controle do carro de mim, mas ainda assim com toda a confiabilidade, conforto e amenidades modernas. E a delícia que é uma boa injeção eletrônica. Comandada por um cabo, lógico.

Diferente de um carro moderno, o Mondial dá a sensação de ser realmente uma máquina. Hoje, tudo é filtrado por um computador antes de virar um comando de verdade, e nada que aja desta forma conseguirá a pureza dos comandos deste carro. E são eles, os comandos principais, a direção, o cambio e os três pedais, que são o ponto alto aqui.



O que me faz pensar: como pode uma empresa como a Ferrari, que aperfeiçoou um mecanismo tão fantástico, tão perfeito tanto esteticamente quanto funcionalmente como aquela alavanca de câmbio, depois abandoná-la em favor de borboletas eletrônicas atrás do volante? Eu sei que essas borboletas são mais eficientes, rápidas, que ganham vários milissegundos nas trocas, que servem café e chá com bolinhos quando não estão fazendo nada. Mas, sério, gente... quem se importa? Aquela alavanca é um dos maiores prazeres que um cara pode ter usando calças, e vocês vem me falar de milissegundos? Por favor...



Literalmente me faltam adjetivos na língua portuguesa para explicar o que é o carro. Os ingleses diriam “an exquisite machine”, os italianos, “una bella macchina”. Eu, fiquei sem palavras. Fiquei com vontade de aprender italiano e me mudar para Modena. De xingar todo mundo no trânsito com meio corpo para fora do carro, e a mão para cima. De cantar uma música do Peppino di Capri.

Correndo o risco de cair no lugar comum, Ferraris realmente são coisas especiais. Mas não especiais pelo preço, exclusividade, fama, imagem, mas especiais do banco do motorista. Se este, o menos amado, o mais lento dos Ferraris “modernos”, o filho bastado renegado por todos, ainda é esta coisa maravilhosa, o que mais dizer?

Óbvio: Que ainda está para nascer um Ferrari que seja menos que sensacional. 


MAO

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